Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou oficialmente a pandemia da Covid-19. Esse momento deu início ao que o pensador Edgar Morin chamou de um “festival de incertezas”. Com um vírus desconhecido se espalhando, as diversas esferas da vida foram abaladas. A incerteza acerca dos desdobramentos e consequências da pandemia tornou-se uma constante, e as restrições de mobilidade para conter a proliferação do vírus afetaram de forma drástica o setor de turismo. Um relatório da Organização Mundial de Turismo (OMT) de abril de 2020 indicou que 100% dos destinos turísticos do mundo implementaram medidas restritivas em resposta à crise.

Ao chegarmos em 2022, dois anos após o início da pandemia, as incertezas ainda persistem. Os seus impactos variam conforme a fase e local de incidência, com os grupos sociais mais vulneráveis enfrentando os maiores desafios. A pandemia expôs e intensificou problemas sociais já existentes, como a desigualdade social, econômica e política, realçando a necessidade de uma reavaliação das estruturas hegemônicas que sustentam essas relações. Também se tornou evidente que alguns grupos conseguiram não apenas responder de modo mais eficaz à crise, mas até lucrar com ela.

Segundo um relatório de janeiro de 2021 da Oxfam, os 1.000 maiores bilionários do mundo recuperaram suas fortunas aos níveis pré-pandemia em somente nove meses. Em contraste, as camadas mais pobres da população devem levar mais de uma década para se reerguerem. Entre março e dezembro de 2020, a riqueza desse grupo de bilionários aumentou em US$ 3,9 trilhões, enquanto a pobreza global cresceu. A Oxfam ainda observou que “um novo bilionário surgiu a cada 26 horas durante a pandemia”, simultaneamente em que a desigualdade social contribuiu para uma morte a cada quatro segundos.

Frente a esse cenário, o turismo e o fenômeno das segundas residências começaram a passar por transformações. Muitas especulações surgiram sobre o futuro do turismo, especialmente com a expectativa de um modelo mais sustentável. Após dois anos, no entanto, verifica-se que enquanto alguns aspectos da prática turística mudaram, não houve uma reestruturação significativa do setor. O turismo, como expressão das contradições sociais e espaciais atuais, tem evidenciado a desigualdade e segregação, com as segundas residências refletindo essa realidade socioeconômica.

Este artigo busca analisar como as segundas residências se comportaram durante a pandemia, utilizando como estudos de caso Armação dos Búzios (RJ) e Bertioga (SP). As segundas residências, sua localização e as dinâmicas envolvidas revelam um emaranhado de fatores sociais e espaciais. Apesar de algumas mudanças de uso durante a pandemia, continuam a evidenciar desigualdade e segregação socioespacial, com a crise sanitária acelerando esses processos.

O quadro analisado foca em duas localidades litorâneas que, pela proximidade com as metrópoles de São Paulo e Rio de Janeiro, mantêm relações significativas em termos de turismo e lazer. A escolha das localidades se justifica por três motivos principais. Primeiro, Bertioga apresenta 62,33% de residências secundárias, enquanto Búzios possui 37,69%, características que indicam forte relevância na disseminação dessas propriedades. Em segundo lugar, ambas as cidades são categorizadas pelo Ministério do Turismo como municípios A e B, respectivamente, tornando-se centrais no Mapa do Turismo Brasileiro. Por último, o vínculo histórico com suas capitais estaduais ajuda a entender a dinâmica do uso turístico e a incidência de segundas residências na área.

O recorte temporal da análise abrange o período antes da pandemia até abril de 2022, utilizando tanto dados qualitativos quanto quantitativos. A pesquisa inclui uma entrevista com o presidente da Federação de Convention & Visitors Bureaux do Estado do Rio de Janeiro, que nos deu insights sobre os impactos da pandemia no turismo fluminense.

Historicamente, o turismo no Brasil se consolidou ao longo do século XX, especialmente nas áreas litorâneas. O fenômeno das segundas residências começou a ganhar força na década de 1950, impulsionado por transformações sociais, como a expansão da indústria automobilística e melhorias no acesso às regiões costeiras. Essa acessibilidade é fundamental para o aumento do número de segundas residências, isso se observa em destinos como Cabo Frio e Búzios, que se tornaram populares entre os que buscavam escapar do cotidiano urbano.

No cenário atual, o uso das segundas residências como “casas de veraneio” está mudando. Inicialmente, muitos proprietários começaram a viver em suas segundas residências permanentemente, aderindo ao home office. A pandemia trouxe à tona um movimento de busca por qualidade de vida que incentivou a procura por aluguéis em ambientes mais agradáveis. Em Cabo Frio, por exemplo, a demanda por imóveis de aluguel para temporada aumentou em até 70% logo no início das restrições. Bertioga e Armação dos Búzios também experimentaram um crescimento considerável nesse setor.

A pandemia não impactou apenas o turismo; também provocou um aquecimento sem precedentes no mercado imobiliário e de construção. As vendas de imóveis cresceram significativamente, indicando que uma parcela da população não apenas resistiu ao impacto da crise, mas encontrou oportunidades para lucrar. O aumento na procura por residências litorâneas e segundas residências reflete uma tendência de valorização no mercado imobiliário em resposta à alta demanda.

Em resumo, a pandemia provocou mudanças nas dinâmicas de uso das segundas residências, aumentando sua exploração econômica enquanto, simultaneamente, muitos proprietários as transformaram em moradia principal. O fenômeno das segundas residências, além de evidenciar a desigualdade social, se apresenta como um reflexo das transformações socioeconômicas vivenciadas durante essa crise global.