Vernacular e Inteligência Artificial: A Distância Entre Dois Mundos

A inteligência artificial (AI) tem se tornado cada vez mais presente em diversas esferas da vida cotidiana, levantando questões sobre os fundamentos que a sustentam e as dimensões que ela abrange. O coração do aprendizado de máquinas reside em conjuntos de dados, cuja estrutura e conteúdo moldam a forma como esses sistemas interpretam o mundo. Essa dependência gera uma interdependência profunda, que não apenas informa as capacidades da AI, mas também define seus potenciais pontos cegos. Esse cenário nos leva a refletir: que formas de conhecimento podem estar sendo excluídas, especialmente aquelas que não são facilmente capturáveis em formato digital?

A sabedoria indígena, transmitida oralmente ou incorporada nas práticas diárias, revela uma conexão profunda com o lugar e a história. Tecnologias de construção vernacular e materiais locais representam uma memória e uma inteligência coletiva que os algoritmos podem ter dificuldade em compreender em toda a sua profundidade cultural e material. Estamos capturando essa memória material? Se sim, o que pode ainda estar faltando ou sendo diluído na tradução?

Organizações como a UNESCO têm levantado questões sobre a AI, especialmente em um contexto de crescente digitalização de conteúdos na internet. Este cenário expõe a complexa e muitas vezes frágil interseção com sistemas de conhecimento tradicionais.


Práticas de Construção Vernacular
Thatch stored in bundles being applied to roof, Zambia, Africa. Image © Jon Sojkowski via Zambia Architecture

A Lacuna Entre Tecnologia e Conhecimento Vernacular

A disparidade entre a tecnologia e a construção vernacular foi evidente em tempos recentes. Hoje, a rápida aceleração impulsionada pela AI continua a perpetuar essa lacuna, que pode até mesmo estar se alargando. Enquanto a inovação avança em uma direção, os materiais locais e as técnicas vernaculares permanecem do outro lado, criando uma disparidade crescente. Embora a AI generativa possa reconhecer padrões visuais e replicar designs, como os fractais da tribo Kassena ou as tendas autoportantes dos nômades mongóis, até que ponto ela consegue realmente entender as técnicas ou as narrativas que os envolvem?


Imagem gerada por AI
Imagem gerada por AI, baseada em um prompt definido pelo usuário. Image via ChatGPT

Inteligência Coletiva e Compreensão Contextual da Construção

Comparando materiais “modernos” e vernaculares, uma diferença fundamental surge sobre como o conhecimento é transmitido. A AI pode processar materiais modernos com facilidade, quantificados em dados e imagens, enquanto os materiais tradicionais dependem do conhecimento que é partilhado por meio da prática.

Nas culturas vernaculares, a compreensão dos materiais envolve um contexto profundo: clima, época de colheita, comportamentos térmicos e simbolismo. Eles não são apenas objetos de construção, mas elementos vivos dentro de um ecossistema compartilhado. Este tipo de conhecimento vai além da sistematização, sendo alimentado pela experiência direta, enraizada na vida cotidiana e na inteligência coletiva que emerge da constante interação da comunidade com seu ambiente.


Ilhas Flutuantes
Floating islands of AI-Tahla – Ma’dan Village, Iraq, Middle East. Image © Agata Skowronek

Tecnologia Contemporânea como Ponte

Em vez de posicionar a inteligência artificial em oposição às tradições vernaculares, é mais produtivo explorar seus pontos de convergência. As tecnologias contemporâneas atuam como uma ponte. Elas oferecem novas maneiras de engajar com o conhecimento vernacular – através de documentação, análise e até mesmo produção.

Tecnologias como o escaneamento LiDAR (Light Detection and Ranging) permitem a criação de mapeamentos 3D de alta precisão, úteis para preservar e estudar construções. Essa integração pode predizer a durabilidade e o comportamento de materiais, oferecendo opções para otimizar seu uso.


Mapas Tonais
Mapas tonais de toda a ilha de San Giorgio, Veneza. Image Courtesy of Factum Foundation

A documentação é apenas uma parte da convergência. Tecnologias de fabricação digital, como a impressão 3D com materiais à base de terra, possibilitam a recriação de formas complexas que seriam difíceis de realizar manualmente com trabalho tradicional.


Planta do Protótipo TOVA
Planta do protótipo TOVA mostrando raio de impressão. Image © Posgrado 3D Printing Architecture IAAC

Ao longo deste processo, seja ao escanear, documentar ou fabricar/imprimir, é essencial questionar: Por quê? Esse questionamento sustenta uma reflexão crítica. Para que a produção arquitetônica contemporânea incorpore as técnicas de construção contextualizadas, é preciso entender o clima e a ligação com o território, assim como a vida comunitária.

O conhecimento do passado oferece orientações valiosas diante da degradação ambiental e da crise climática. Assim, repensar a noção de “inteligência” como capacidade de adaptação ao ambiente, a partir de uma perspectiva interconectada, se faz necessário.


Protótipo TOVA
Protótipo TOVA, Espanha / Posgrado 3D Printing Architecture IAAC. Image © Gregori Civera, Mehdi Harrak